26.1.16

Melô de um obstetra desencantado



O parto normal é algo lindo de ser observado
Ainda mais no meio da madrugada
Com os olhos desabando de tanto cansaço

Gritos de dor 
Urros 
Sobressaltos
Um pai fresco e assustado
Querendo desmaiar ao meu lado
Num esforço supremo 
Para conseguir atrapalhar o meu trabalho

Não entendo como alguém em seu pleno juízo
Opta por se submeter a algo
Tão animalesco e primitivo
Tamanho descalabro
Sendo tão fácil resolver as coisas
De forma mais simples e civilizada
Com uma cesárea de horário marcado

O períneo quase estourando de tão esticado
Uma bola de pelos brotando por aquele enorme buraco
Que vai se transformando em algo cada vez maior
E de modo quase inacreditável
Cabeças-tronco-membros vão se configurando
Ao serem expulsos daquele ventre deformado

Sangue
Fezes
Flatos
Fluidos urêmicos em jatos
Insistem em ser coadjuvantes no ato
Me buscando como alvo
Abrilhantando a pirotecnia do espetáculo

Confetes e serpentinas para o neonato
Um banho de humildade
Bênção para o rebento
Este tão amado ser
Agora recém-chegado

Já com o concepto
Chorando a plenos pulmões
E do cordão umbilical desligado
Chega a vez do segundo parto
É necessário que a placenta seja expulsa
Em cumprimento ao último passo

Não demora muito e já a tenho em mãos
Disco macio e esponjoso
Que nem ao menos me parece apetitoso
Mas que tanto oxigênio e alimento levou para o feto
Enquanto ainda era apenas um mero projeto

Serve como comida no pós-parto imediato
Para as fêmeas de algumas espécies mamíferas
Ato que vem sendo copiado por certas mães naturalistas
E ainda assim querem que as consideremos humanas

Mas a esta hora da noite
Isso não é assunto a ser discutido
É melhor parar de pensar nisso
E voltar a dormir
Dando o caso por encerrado

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