29.1.10

É preciso assegurar a existência da noite


Garanti-la aos incorrigíveis amantes
Às esposas humilhadas
Às mães torturadas pela incerta chegada
Aos que trabalham invertendo a vida
Aos que andam em círculos
Aos que amargam arrependimentos
Aos que no silêncio se drogam
Aos que quando bebem choram
Aos que querem morrer sem incomodar a ninguém
E aos que simplesmente dormem até o dia nascer

Quando ouvimos dizer:


- Viajando nas asas de um sonho.

Imaginamos que sonho tem asas e voa
Mas não parece ser pássaro
Não respira come ou tinge a nossa testa

Mas também não é máquina
Não pede insumos ou manutenção
Portanto não é planador ou avião

Por outro lado pode carregar objetos
Pessoas com seus sonhos e sentimentos

Sendo assim se aproxima mais do aeroplano
Mas novamente isso me parece improvável
Pois já sonhávamos muito bem antes de o terem inventado

Também não é parente de bule, xícara ou chaleira
Estes não voam e sonho não é utilitário de prateleira

O mais provável é que esta história de sonho voador e alado
Tenha começado com algum poeta malandro
Brincando com o nosso imaginário

28.1.10

Uma vida inteira pode transcorrer


E o encontro dos encontros nunca acontecer
Um caminhar perdido no vácuo infinito

Mas por algum mistério ainda não decifrado
Pode também nos surpreender
Logo em seguida ao pensamento despertado
Aí o reconhecimento é imediato
E os anseios todos recolhem-se pacificados

Mas pode também ocorrer o contrário
E mesmo que para ele se voltem todos os olhos
Não se vê ali identificado
E o que se observa de fato
Não é mais que um estranhamento renovado

27.1.10

Outro dia


Ao atravessar a rua
Sob uma chuva fina

De surpresa fui abordado
Por um sujeito de aspecto meio amalucado

Com roupas esfarrapadas e a voz empostada
Declamou uns versinhos rápidos e seguiu na estrada

Pediu-me que na memória
Os guardasse anotados

Hoje revendo a cena
Eis aqui o resultado:

“O poeta
Porta a poesia
Vara em curto
Que cutuca
A onça-mundo”

26.1.10

Boa companhia


Muitos
Tentei
Ser

Para
Em mim
Viver

Apenas um
Quis
Ficar

Ficou
Sem
Reclamar

22.1.10

A gaveta do criado-mudo


Não comporta nem mais um papel de bala

Deitada de lado
Rosto colado na parede
A menina sabe
Que da mãe só lhe virá o parceiro

Surge na madrugada
Denunciado pelo azedume
Se acola suado àquele corpinho frio
E com os direitos que julga ter conquistado
Lhe sussurra sempre o mesmo ditado:
- Tome aqui esta prenda. Não há com o que se preocupar, se continuar assim boazinha, sempre terá onde morar.

21.1.10

Por hoje


Não quero me ocupar de regras estanques
Nem de claustrofóbicos ditames

Me interessa mais
Um observacional experimento

Acompanhar a palavra
Desde o preciso instante do seu lançamento

E com imparcial atenção
Registrar-lhe o comportamento

...

Erupção magmática
Incandescente e amorfa

Matéria bruta
Que sobre o solo desliza

Se insinua nas fendas
E pouco a pouco esfria

Nesse repouso forçado aquieta
(E mesmo sem nunca ter imaginado)
Tem que se aceitar pétrea

20.1.10

O poeta é como um porco gentil


Que de véspera
Contribui para a festa
Indicando com a própria pata
(O ponto exato)
Onde deve entrar-lhe a faca

19.1.10

Esculpo palavras


Para em seguida lhes dar significados
E assim decidido
Desfruto do conforto
De ter meus silêncios pacificados

18.1.10

Estomáticas verdades


Não há sabores
No céu-da-boca

A sede sobrevive
Ao visgo da saliva

A língua liquida
Mas não procria

Dentes que rasgam
Não se prestam a moer

A úvula (um dia)
Há de ser melhor compreendida

15.1.10

Uma poesia





Só uma vez
Pode ser escrita
Se alterada
É como a água de um rio
Vai embora
E já é outra
A que agora é vista

14.1.10

Dê-me o carinho macio


Da tua palavra bendita
Que me resgata a doçura
E alivia a tensão de minha face
A cada dia mais enrijecida

13.1.10

Não nos percamos um do outro


Sob os nossos lençóis
O mar é sempre revolto

E só sobreviveremos
Se juntos chegarmos ao porto

12.1.10

Não te visitarei mais


Não participarei novamente deste vazio
Que me é insuportável

Não comungarei desta dor inventada
Que me amarra e escraviza

Não ficarei mais sozinho na sala
Transbordando de culpa
E arrependido por ter vindo

11.1.10

Nossos Caminhos


São povoados
Por excessivos sins

Os anos se passam
E como é triste perceber

(Que por agirmos assim)

Quantos nãos à vida
Temos que dizer

8.1.10

Eterno colóquio




Esgotamos tudo que havia para falar
Mas ainda nem começamos a tratar
Do muito que há para silenciar

7.1.10

Acredito


Que ainda exista vida
Entre o sofá e a TV

6.1.10

Fechadas as portas


Com a água a subir
E a arca cheia
Não tarda o zarpar

Os sempre atrasados continuam vindo
Inutilmente tentam entrar
Serão extintos

5.1.10

No ano do tigre


Chove e não para
Lá fora sobe a água

Um rato insistente
A minha porta roça

Imobilizado
Nego abrigo a um desesperado

4.1.10

Girassóis confusos


Por problemas de fuso
Dormiram no ponto

E sem saber distinguir
A que luz seguir
Passaram a acompanhar a lua

Acordaram brancos
Não se reconheceram
E ficaram ainda mais confusos