28.11.08

O último contraponto


Johann Sebastian Bach era maneta. Faltava-lhe a mão esquerda.

A descoberta foi feita por acaso, numa nota de rodapé, durante o processo de restauração de uma de suas últimas partituras conhecidas.

Manifestou também o desejo de não ir para a sepultura como o único detentor deste segredo.

Perdeu a mão, em seus dias de juventude, ao experimentar, de forma inconseqüente, o protótipo de uma das muitas máquinas de guerra projetadas pelo gênio renascentista Leonardo Da Vinci.

Como tentativa de reparação, diante da dimensão do ocorrido, um dos bisnetos do mestre fiorentino prontamente resgatou de seus arquivos um projeto de prótese mecânica manual desenvolvido pelo ancestral e jamais executado. Complexíssimo, diga-se de passagem, cheio de algorítimos estranhos e orientações codificadas.

Aventurou-se na construção, com urgência e pertinácia, desvendou a duras penas as inúmeras amarrações impostas que, ao que tudo indicava, só mesmo a ele se renderiam.

O resultado foi magnífico. Funcionou com tamanha perfeição que, até o fim da vida, o maior dos expoentes do barroco, usou-a sem que nunca pudesse ser notada por qualquer outro vivente.

A notícia que se tem, é que hoje em dia, a engenhoca se encontra guardada a sete chaves no cofre de um banco em Tóquio. E quanto ao projeto, nunca mais foi visto.

27.11.08

Sob a inspiração de Apolo a Fênix retorna transformada


Acabo de vir do sepultamento
Foi comovente
O Cio da Palavra recebeu honras de chefe de estado

O que é que se pode fazer

Diante do dever
Além de trabalhar
É preciso mostrar serviço

Caracu com ovo


Hoje é possível compreender o quanto estávamos cegos
O suicídio da pata era algo anunciado
Não valorizamos os sinais que agora nos parecem tão óbvios
Há muito andava deprimida
Havia indícios de despedida em tudo que fazia
Sua tristeza era desproporcional a qualquer fato aparente
Dizia que a vida não lhe traria mesmo mais alegrias
E o que tinha de mais precioso lhe haviam roubado
Ninguém acreditou
Não a julgaram capaz
E o resultado
Infelizmente...

26.11.08

Minhas uvas, minha musa, eu e o vizinho


Plantei uvas em meu quintal
Ajudou-me minha musa

A intenção era de preservar um pouco o nosso ninho
Abrigando-o do agudo olhar vicinal

Mas hoje
As videiras já caminham muro acima
E começam a formar cercas-vivas
Uma pérgula talvez até em breve eu consiga

Trabalharei duro para que se torne uma vinha
Com uma poda ou duas
Muita conversa e alguma intimidade
Poderei ter a primeira vindima

Sonho com este dia
E me vejo na grama
Sob a sombra das ramas verdinhas
Sorvendo orgulhoso
Um a um os grãos maduros
Destacados dos rechonchudos cachos

Imagino a coloração vinhosa e a doçura suprema
Servidos à boca
Pelas suaves mãos
De minha Vênus provençal

Aprendidos os segredos
Será a vez de me arriscar com as viníferas também
O caminho mais seguro para a sagração

Que mais poderia pedir a Baco este seu humilde devoto?

25.11.08

Miolos cozidos ou Observando um paralelepípedo sob o sol de meio-dia


O centro da terra é de pedra
Assim também é o centro do universo
Algo como rocha pura

O centro da mente é de pedra
Uma espécie de cristal
E assim é o centro de todas as coisas

Tudo tende ao sólido e nada mais

A descoberta é recente
E ainda não pode ser comentada
Por abalar demais as bases de toda a ciência

O conhecimento público deste fato
Provocaria um efeito em cascata de pânico e caos
A ordem social se fragmentaria

Desespero e fuga em massa para todas as direções do planeta
Numa instintiva reação dispersiva

As pessoas evitariam qualquer possibilidade de contato físico
Ocorreriam rituais de auto-mutilação e fragmentação de corpos

Unhas seriam arrancadas no asfalto
Em inúteis tentativas de se evitar o arraste para a agregação inexorável
Processo que de forma notória já está em curso

Não tem nome ou propriedades conhecidas
Não se pode controlar e a tudo transforma
Absorve e homogeniza

Até mesmo o espaço
O tempo e as ilusões
Tudo que existe se renderá ao indissolúvel monólito

A fusão será completa
Até o puntiforme e invisível
De composição não particulada

E ao termino
Não mais haverá vazio ou cheio
Dentro ou fora
Antes ou depois

Restará apenas o nada infinito

18.11.08

O que o mundo precisa mesmo é de um pouco mais de "senso de noção"


Não, não meu querido. Não estou nem um pouco ofendido!
O que está acontecendo neste momento, durante a sua consulta médica, é apenas algo que se equivaleria a ..., vamos imaginar: você, um pecador arrependido, diante do padre num confessionário, interrompendo o ritual para atender ao celular, apenas para informar a quem te ligou que está no meio de uma reunião e por isso não poderá falar no momento. Ou até mesmo numa outra situação..., durante um concerto, querer que o maestro continue regendo a orquestra e finja não se incomodar com um imbecil feito você explicando para a secretária, em alto e bom som, que o relatório sumido está na segunda gaveta da esquerda em baixo da pasta marrom.

13.11.08

Fantasie d'amour


Está bem está bem
Eu admito tenho mesmo
E são muitas

Mas loucuras
Só sou capaz de fazer por duas

Quero-as cada qual do seu jeito sem tirar nem por
E estão comigo todo o tempo

Com Uma vivo há um quarto de século
Com a Outra desde que me reconheço

Uma é concreta e substanciosa
A Outra etérea e me prende pela emoção

Têm sabores distintos e igualmente intensos
Sabem uma da outra e não se importam
Se complementam e acham até que isto é bom para mim

Comigo vão para a cama
Dividem o espaço e o amor
Sem conflito ou inibição

Minhas amantes são preciosas
Saciam tudo que sou
Cada uma a seu modo

Quero-as juntas para sempre
E acho que desejam isto também

A Patroa é a dona da pensão
Senhora de seus domínios
A Outra fecha o ciclo
Adoça e azeita o nosso ninho

12.11.08

Tantric marathon


Gosto das grandes distâncias
Daquelas que exigem a corte
Que começam difíceis e com o tempo se dão por vencidas
Que necessitam confiar antes de permitir o toque
A diferença está nos detalhes
Na forma de se abordar o percurso

Pequenas jornadas exigem esforço descomunal
Atitude eletrizada e explosiva
Que extenuam o corredor e não resultam em prazer

Distâncias maiores requerem doação
Aceite
Humildade
Cumplicidade
Relaxamento
Ritmo e cadência
Possibilitam saborear a vitória
E não nos abatem no fracasso se o trabalho foi cumprido
Pois deixam claro que a redenção é sempre possível

Kyrie eleison


(gravura Inos Corradini)

Ao contornar a esquina
No muro lateral da igreja
Uma faixa anuncia

Encontros de casais com Cristo

E não é que a própria santa madre
Induz seus filhos ao pecado

11.11.08

Toda unanimidade é burra


Quarta-feira de cinzas

A face pálida insiste em aparecer sob a maquiagem borrada

Passado o cortejo festivo e recuperados da ressaca

Convém voltar ao mundo


Uma fábula já conhecida

Que como na infância fica sujeita a ser repetida

Um cem número de vezes


Desconfie de quem

Tenha lido Nietzsche

E ainda afirme acreditar na existência de deus


Distorce conteúdos

Apoia-se em falsas premissas

E opta por agradar para vestir poder


Carisma

Lágrima fácil derramada no discurso

Oratória perfeita e currículo impoluto

Parece realmente acreditar no que diz

E é possível que acredite mesmo

Alimentou-se da fantasia e fez-se messias

De novo



Esta história de sonho

Esperança

E nós podemos

Soa como cantilena

Que no passado tocou no rádio

E de alguma forma persistente no ar

Sem que ninguém mais lhe dê atenção

É música para ouvir música


Arrisca-se a pisar no sangue derramado

Daqueles que antes dele deram seu pescoço ao carrasco


Neste caso

O politicamente correto

Me remete a frases já mais do que batidas

Dar os anéis para manterem-se os dedos

Por vezes mudar para que nada mude


E a história

Sempre se repetindo