31.3.14

Deve-se comer a qualquer custo



O fruto que amadureceu na árvore
E por gravidade
Repousa esquecido
No chão do pomar?

Ou será melhor que sirva de alimento
No germinar das sementes
Quando os brotos precisarem de luz
E a vida necessite continuar?

28.3.14

Suas raízes



Lhes deram copas altas
Galhos curtos
E troncos lenhosos
Muito bem fixados
No alto de morros escarpados

Separados por um vale profundo
Foram vencidos pelas dificuldades do terreno
E embora loucamente apaixonados
Jamais se alcançaram
Nem sementes trocaram

27.3.14

Palavras



Cacos de uma taça de vinho
Esquecida no piso do quarto

Ocultados pela penumbra
Passam desapercebidos

Até que alguém cego pelo entusiasmo
Passe sobre eles descalço

E o resultado que já era previsível
É que o andar do distraído

O fará por um bom tempo lembrar
Do que não poderia ter sido esquecido

26.3.14

Faltou-nos discernimento



Não fizemos um acordo
Com a razão
Que contemplasse as partes
Com o necessário esquecimento

25.3.14

Perdoe



Pelo excesso de vínculo
Por ser dividido

Pela entrega sincera
A incapacidade da espera

Dias vem muito devagar
Dias vão rápidos demais

Quantas décadas
Ainda hão de escapar

Entre os dedos das mãos
Ao tentar espremer o amor?

Água que escorre e se perde
Não lava a face

Fluido que evapora sem um teto
Não tira das rugas o carvão

E frente ao espelho
Quando dentro dos olhos me olho

Vejo só elementos soltos
Diferentes contornos

Um flutuar aleatório
Sem possibilidade de união

24.3.14

Enquanto



Um retorna para o seu mundo
Confuso e aturdido
Deixando um rastro de sangue
Pelo caminho

O outro carrega sob as unhas
Uma pele que não é sua
E além das lágrimas
Em desespero só lhe resta o grito

21.3.14

Ainda que o sangue circule em ensandecido galope



Ruborizando a face e fervendo na artéria
Desejando precipitar-se por cascatas que o levem ao mar
Não resistirá à frieza paralisante da sensatez
Paradoxal atributo das feras
Mesmo que o ser atormentado pela dúvida
Desvestido de todos os epitélios
Busque o expurgo da culpa
Esvaindo-se em pálidos impropérios
Para obter o pretendido perdão
Precisará de sacrifícios e autoimolação
O esfolar corrosivo nas imersões em piscinas ácidas
O arrastar de pés nas enxurradas cáusticas
Arrancar com torquês
Um a um sem esquecer nenhum
Na exata ordem de colocação
Os cem mil pregos cravados no crânio
Depois de cumpridos os objetivos do algoritmo traçado
De estimular regiões do encéfalo isentas de coágulos
Seccionar músculos aliviando tensões tendinosas
Impedir faíscas no acoplamento das partes gelatinosas
Revelar sob a máscara a expressão marmórea da morte
A catatonia elástica das línguas chamuscadas
Dos beijos com gostos padronizados
E transformar as últimas e já desbotadas lembranças
Em entes plasmáticos cuidadosamente desfigurados

20.3.14

Erraste



Em mantê-la presa
Por tantos invernos
Numa gaiola dourada
Sob um mesmo teto

Te achavas protegido
Temendo que livre
Se transformaria em arpia
O teu canarinho

Mas foi inútil a precaução
Ao escapar do cárcere
Ave migratória
Revelada

Recuperou o horizonte
Sua morada
E aos teus apelos
Não deu qualquer atenção

19.3.14

Grata descoberta



Cursos d'água
Identicamente desenhados
Nas palmas de nossas mãos

Caudalosa bacia
Rios e afluentes em demasia
Unindo vidas tão distintas

Improvável hidrografia
Força que não se explica
E despreza a razão

18.3.14

Há coisas



Que não tenho como dizer
E me assusto só em saber
Do que sou capaz de fazer

Há coisas

Que não posso explicar
Mas me acalmo só em nelas pensar
Pois já é uma forma de falar

17.3.14

Hoje



Examinei minha saudade
Com atenção

Vasculhei todos os compartimentos
Sem esquecer mente e coração

E foi com surpresa
Que ao término da expedição

A tua inexplicável ausência
Tive que aceitar como constatação

13.3.14

Ao apagar a luz



Descobri que já não sabia
Como é ficar só
Numa cama vazia

Tudo me faltou
No imenso espaço
O calor o abraço

Quase não dormi
Sem o conforto do teu corpo
No meu corpo colado

12.3.14

Na madrugada



Quando acordo
Peito apertado

Sinto medo
Pois não me reconheço

Nem me percebo no lugar
Aonde estava deitado

Fico ainda mais assustado
Quando não vejo

Num sono silencioso e sossegado
O anjo que até há pouco dormia ao meu lado

11.3.14

O artista



Inicia os desenhos
Grafitando contornos

A tudo contorna
Para entender o que toca

Os relevos quentes do corpo
Os limites tracejados das vontades

Só depois usa o acervo de cores
Para preencher os esboços

Observa tranquilo o retrato inacabado
Até que uma mão se estende

Pede-lhe que tire as botas cheias de barro
Que passe pelo jardim das carícias e siga em frente

Esbarrando em girassóis floridos
Amarelo vivo margeando o caminho

E já no abrigo da cabana
Cortinas verdes ao vento voando

O conforto róseo das bocas coladas
Línguas se reconhecendo sem esforço

Colorindo sentimentos cada dia mais vivos
Sorvendo matizes de um hálito morno

A leitosa penumbra do universo amoroso
Rasgada por errantes pinceladas prateadas

E o degustado gozo de uma chuva de meteoritos
Em vermelho fogo rumo ao infinito

10.3.14

O amor



No texto
E na tela
É de um jeito

Não oferece perigo
Se fica só em sonho
Ou pensamento

Mas quando atinge
O sujeito por dentro
Segue um outro roteiro

7.3.14

Sejamos tranquilos



Fiquemos juntos
É este o mundo que temos
O único
Pelo que até agora sabemos

Façamos o que nos cabe
De mãos dadas
Braços e lápis
Melhoramos um pouco nossa nave

6.3.14

Não tenho apegos



Não tenho donos
Teu amor é para mim
O maior dos patrimônios

Recuso-me a ser para ti
O que já tive e nunca quis
Apenas mais um incômodo

Ainda que precise me desfazer de tudo
Mesmo do que até hoje só nos fez felizes
E isso te cause assombro

Antes que o luto pelo que pode chegar ao fim
Não nos permita mais sorrir
E nossos caminhos sejam só desencontros

5.3.14

Se todas as noites fossem só nossas



Não seria necessária tamanha economia
E gastaríamos com mais autonomia
Essas horas hoje tão miúdas

Moedas duramente guardadas
Contadas na palma da mão
Uma a uma

Assim esta cruel ampulheta
Sem corda ou freios
Que não atende a apelos

Poderia ser atirada de vez
Janela abaixo juntamente
Com a culpa e os arrependimentos

E nós de camarote
Nos divertiríamos aliviados
Assistindo ao espetáculo

De vê-la perdendo a empáfia
Ao espatifar-se no meio da rua
Junto com seus pares em pleno asfalto