30.9.16

Presto a ti os serviços mais íntimos


Em troca de um chão de senzala e um prato de comida
Mas não espere de mim
Nada mais que alguns momentos de alegria
Meu corpo cativo é teu pelo tempo que determinares
Mas o coração rende adoração a um outro alguém
Que ainda é rainha em distantes paragens

E quando amuado de saudade se recusa a obedecer
O nego aqui é acusado de roubo, chamado de fujão
Acorrentado ao tronco, cortam-lhe a mão
É açoitado até desfalecer
E largado ao relento com suas feridas
Deixando que a sorte decida se continuará a viver

29.9.16

Para que escrever poesia?


Para expressar o que se sente
Inventar o que se sente
Organizar as maluquices que vão dentro da gente
Retratar o que se vê
Criticar o que se vê
Mudar o que se vê
Abusar da liberdade de fazer
Divertir-se na fantasia
Ou submeter-se
E simplesmente obedecer
A uma ordem interior que determina

28.9.16

Os ventos e a chuva


Nunca terão força suficiente para impedir que se encontrem
Aqueles que se amam mas guerreiam em reinos diferentes

Mesmo que um oceano esteja entre eles
Mesmo que seus barcos fiquem presos nos portos mais remotos do tempo

E mesmo que o eterno movimento dos continentes
Afaste cada vez mais seus corpos terrenos

Em algum momento suas trajetórias voltarão a se cruzar
E não será possível evitar o imediato reconhecimento

27.9.16

O gato que vigia o aquário


Não tem pressa
Sabe que a batalha foi ganha
No momento em que adotou a espera
Como estratégia

26.9.16

Se eu ameaçar falar


Não deixa escapar dessa minha boca estúpida e vulgar
Qualquer palavra que possa machucar
Por favor, não me dê tempo
Me encha de carinhos e beijos
Esfregue em minha cara os sentimentos
Para que possamos seguir vivendo assim
Juntos e nos amando em todos os momentos

23.9.16

Agora


Ficou fácil de entender
O porquê de te ver sempre sem ninguém
É que não tens como aguentar por muito tempo
Os indivíduos que com maior frequência te assediam
E te causam tantos prejuízos

Canalhas mal-intencionados
Mentirosos compulsivos
Bêbados inveterados
Sádicos enrustidos
Psicopatas dissimulados
Desajustados de todos os tipos

Não é o que mereces, longe disso
Mas às vezes te vejo boba demais
Te entregas totalmente, corpo e alma
Sem avaliar bem os perigos
E assim acabas por atrair esses pervertidos

22.9.16

Não se carregam escritas na face


Frases como:
Eu odeio o mundo
Quero te matar
Estou tão infeliz
A ponto de me suicidar

Na maior parte do tempo
Os sentimentos correm por dentro, em silêncio
A dor é espasmódica, cursa em ciclos
O tormento é convulsivo, progressivo
E a erupção pode vir a qualquer momento

Mas mesmo assim conseguimos a proeza
De transitar pelas calçadas
Com o olhar insuspeitável e distante
Como se nada estivesse acontecendo
E tudo transcorresse em perfeito equilíbrio

21.9.16

O relacionamento virtual


Por mais convincente que possa parecer
Não consegue ser real

As redes antissociais aparentam nos aproximar
Mas só nos afastam ainda mais

Funcionam como agentes mutagênicos em nosso DNA
Nos priva e nos faz acovardar diante do mais nobre dos ofícios: amar

Não matam a sede de paixão
Não acabam com a solidão

Resolvem  no máximo o problema mais superficial
O da fluência do líquido seminal

20.9.16

Naquela última noite


Estavas tão assustada
Querias falar
Precisavas falar
Falar e falar
E eu te ocupava impiedosamente a boca
Com minhas insistentes investidas
Insensível e sedento
Só enxergando minhas carências
Guiado unicamente pelo desejo
Não percebi o que se passava
Não respeitei o teu momento
Esse foi só mais um de meus erros
Perdemos a chance do entendimento
E agora não há mais tempo
Choveu, choveu,
Apagado o incêndio
O fogo não passará mais por aqui
Mesmo que tentemos reacendê-lo
Mesmo que mudem os ventos

19.9.16

Não perca seu tempo tirando minhas medidas


Não tenho a intenção de ser enterrado
E a cremação não me parece sustentável
Decidi que meu corpo será doado
E se o que restar de mim
Ainda for de alguma serventia
Que tudo seja aproveitado
Até o último pedaço
Com o respeito que se faz necessário

16.9.16

Contarei nossa história


A qualquer um que me estenda a mão
E a repetirei quantas vezes precisar
Pois só desgrudarei a barriga deste balcão
No dia em que vieres me buscar
Mesmo sabendo que não costumas
Sujar teus pés neste tipo de lugar

15.9.16

É mais forte do que eu (1)


Como te olhar
E não poder te tocar?

Como te tocar
E não querer ser um contigo?

Como ser um contigo
E achar possível retornar ao mundo dos vivos?

14.9.16

A Dor maldita


Feroz Rainha expansionista
Nunca recua de seus intentos
A guerra que travou durante décadas
Só se encerrou quando percebendo que perderia a última batalha
A mais sangrenta e maior das carnificinas
Numa manobra engenhosa de estrategista
Apunhalou pelas costas a palavra Amor
Roubou-lhe os alfarrábios proibidos
E o lançou sobre os campos aonde ocorriam os extermínios
O maior de todos os feitiços
Conseguindo a proeza de estender seus domínios
Para além das fronteiras do espaço e do tempo
Transformando todo o povo de seus novos reinos
E a legião de mutilados e corpos apodrecidos
Em meras estátuas paralisadas ao relento
Calando os gritos de dor e desespero
Condenado tudo e a todos ao eterno silêncio
E não existem registros em arquivos de um antídoto
Ou de quanto tempo poderá durar tal encantamento

13.9.16

Quero que as palavras que tinha para te dizer


Fiquem cada vez mais volumosas
Tão imensas que me parem na garganta
E não possam ser pronunciadas

Tão pesadas
Que a gravidade me force a degluti-las
A processá-las nas entranhas
E ressignificá-las

Que ao me obrigar a colocá-las para fora
Pelo lado oposto das ofensas mundanas
Já estejam irreconhecivelmente desarmadas
Mesmo se submetidas a uma revista detalhada

12.9.16

Amor exagerado


É cristal dos mais delicados
Que quando imerso
Numa atmosfera de agudos extremados
Explode estilhaçado em mil pedaços
Tornando-se entulho
Inútil e transfigurado

9.9.16

Para mim


Não existe lugar mais triste no mundo
Do que um brechó, essas lojas de usados
Não sei bem por que, mas sempre penso o pior

Penso que o vestido de noiva
Garbosamente exposto na vitrine
Seria para um casamento que não aconteceu

Que as roupinhas de bebê
Cuidadosamente empilhadas sobre o balcão
Vestiriam o fruto de um amor que não nasceu

Que o paletó empoeirado
Com um lenço delicadamente dobrado e esquecido no bolso
Foi de alguém que nem por seus antigos pertences será lembrado

Que as blusas desfiadas, calças brilhando nos fundilhos
Camisas faltando botões e com os colarinhos puídos
Não deveriam ser vendidas mas sim doadas para quem mais precisa

Que os calçados, bolsas, cintos, sempre muito usados
Sinto-os carregados demais em histórias
Quando os tenho nas mãos, acho-os muito pesados

Que os relógios, brincos, colares, pulseiras
Estão à espera de novos pulsos, pescoços e orelhas
Que possam resgatá-los do ostracismo lhes devolver o brilho

Que os livros, discos e filmes misturados nas estantes
Preferências e universos culturais tão contrastantes
Viraram uns poucos trocados para garantir algum alimento no prato

Que as paisagens e retratos pintados por mãos nitidamente amadoras
E que tristemente disputam espaço nas paredes
Já serviram para alegrar os mais diversos ambientes

Que as fotos antigas, famílias imensas reunidas
Exercem um estranho fascínio sobre uma pessoa
Que se interessa em colecionar mortos que não são seus

Que as cartas escritas de diversas partes do planeta
Postais com selos raros e souvenires trazidos dos lugares mais exóticos
Não tem qualquer significado para quem os vê assim reunidos numa caixa de sapatos

Que a louça manchada, as taças lascadas, a prataria torta e oxidada
Precisariam de um bom restauro
Para terem ainda alguma serventia numa refeição em família

Que os móveis imensos, eletrodomésticos complexos
Alguns intactos outros nitidamente desgastados
Vieram de lares desfeitos e tornaram-se inúteis para seres solitários

Que quando passando por uma rua tranquila se vê uma faixa: Família vende tudo!
Não é triste pensar que tudo que foi juntado por tantas vidas em tantas décadas perdeu o sentido?
E que até a casa até vai junto podendo desaparecer desse mundo?

É assim que raciocino
Sei que é exagero, mas é inevitável
Minha mulher não se incomoda com isso e pensa mesmo tudo ao contrario

8.9.16

Quanto maior o não


Menor o meu chão
Preciso aprender a voar
Enquanto tenho opção

6.9.16

O que é feito dos sonhos


Que não mais lembramos
Ou conseguimos registrar?

Que quando vividos
Nos pareciam tão importantes e nítidos?

Estarão arquivados em algum outro mundo
Cuidadosamente escondidos?

Ou será que essa matéria-prima bruta
Que mereceria ser trabalhada com carinho

Desaparece simplesmente
Acabando sem deixar vestígio?

Se for assim, é incompreensível
Um grande desperdício!

5.9.16

Amor que acaba e não termina


É como um fim de tarde que se eterniza
Onde não se vê mais o sol no horizonte
As sombras são longas e a luz baça
A tudo envolve e (ainda) ilumina

Mas ao insistir em permanecer (por não aceitar perder)
Não permite que o firmamento se vista de negro
Que descansem os sentimentos
E que a vida possa prosseguir no outro dia

2.9.16

Amor que se vive não morre


É planta enraizada na memória
Aninhada num horto de espécies raras
Rasteiras, arbustivas
Trepadeiras, arbóreas
Perenes e decíduas

Em arranjo orquestrado
Eclodem em harmonia
Cores, aromas e sabores
Cada qual no seu tempo
Cada uma de um jeito
Para deleite do amante extasiado

1.9.16

Mantenha teus olhos abertos


E fixa-os em mim
Minha trôpega Rainha
Musa bêbada
Deusa entorpecida
Vem, sai da cama
Apoia-te neste braço
E resolve teu problema mais urgente
O vômito iminente
Antes que inundes nosso quarto
Com o pouco que comeste
E muito do que bebeste
Nesta noite de amor desenfreado

Depois um banho seria bem vindo
E enquanto te purifico
Te bajulo
Minha amada
Te abraço
Meu mundo
Te idolatro
Me fundo de novo contigo
E da próxima vez
Sejamos mais sensatos
Deixando de lado
Os exageros de Baco