31.7.09

Tema e variações 4


(de Marina Colasanti)

Fartura

Agradeço, Senhor,
as três orquídeas roxas
no jardim
e as mãos do meu amor
nas minhas coxas.

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(para Marina Colasanti)

Fartura

Agradeço
Ao engenho humano
Pela afiada tesoura
Que a ora-pro-nobis disciplina

E à natureza
Por me permitir repousar as mãos
(Todas as noites)
Nas fartas coxas de minha amada
Musa divina

30.7.09

A cabeça gira


(para Fausto Wolff)

E um emaranhado de sins e nãos
Se alternam nas ações

Carinhos e agressões
Idas e vindas
Confusão ciclotímica

Não para nunca de girar

Tudo escapa pelas frestas
E as consequências
(Não raro injustas)
A uns ferem
A outros privilegiam
Mas muitos restarão esquecidos

E as responsabilidades
A quem atribuir
Quando não se dominam as vontades?

29.7.09

No zoo



Tudo permanece triste
Tudo permanece igual
Por que hoje é quarta-feira

28.7.09

Humo sapiens


(para Augusto dos Anjos)

Sonhei que estava morto
Mas ainda tinha pulso

Observava com surpresa
O chorume viscoso e preto
Que de meus poros brotava

A pele friável
Ao mais leve toque
Se desmanchava em pegajosas lamelas
Que se acumulavam ao meu lado
Numa pilha disforme
Descobrindo meus ossinhos magros

Acordei tranquilo
Feliz até
Por entender a nossa exata função
Aceitando naturalmente
O esfarelamento e a podridão

27.7.09

O que trago no peito


(para Roberto Marinho de Azevedo)

É um grande vazio
Um buraco imenso

Tento preenchê-lo
Com palavras
Que de outros verteram

Montanhas de páginas
Não raro desperdiçadas
Lágrimas que se evaporam ainda na face

Mas quando um bom poema encontro
E me serve de luva
A cratera se enche
Retomo o pulso
Agradeço ao amigo
E dispenso-lhe o ombro

24.7.09

Haiku inspiration 16


(foto: Marcos Y. Hirata)

Ainda chove
Manto que a luz encobre
Para a cidade

23.7.09

Anodinia


(para Ivete Tannus)

Solstício de inverno
Frente a janela
Por longo tempo parado

A rua não convida
Uma cômoda paralisia se instala
E o sentimento é nenhum

Com o rosto colado no vidro
Observo o condensado opaco
De meu hálito matutino

Com o dedo escrevo:
As alegrias que tive
Criei-as todas
Nenhuma me veio porque quis
Usei-as enquanto pude
Mas escaparam-me
(Sem exceção)
Assim que dormi

22.7.09

A propósito do ano da França do Brasil


(para Manuel Bandeira)

-Mademoiselle, si vous plait!

Ela nunca deixava de atender
Flutuava no ar
Em minha direção

Eu lhe apontava qualquer coisa no livro
Como se fosse dúvida
Ela colocava os óculos
Abaixava-se lateralmente sobre meu ombro
E o que vinha à seguir
Era para mim o paraíso
(Eu já sabia)

O aroma era de alfazema
Os cabelos longos caiam sobre um rosto perfeito
E aquele decote
Emoldurava uma paisagem misteriosa
De beleza jamais retratada
Dedos longos e bem torneados
Acarinhavam as palavras em meu caderno
O arfar ritmado do peito
E a voz aveludada
Se uniam em harmonia

Quando por fim se afastava
O encanto que sentia
Doía
De tão bonito

Quantos sonhos carreguei desses momentos
(Tão intensamente)
Vividos

Minhas Classes du Francais
(Sem dúvida)
Funcionaram melhor que as de Princípios de Saúde

21.7.09

O homem enfim chega à lua


(para Vinícius de Moraes)

Final dos anos sessenta
Uma cruzada de pernas era famosa entre os meninos
Imperdível
Mais edificante que qualquer tratado ecumênico

Gerava disputas acirradas e classificava os fedelhos
Entre os que viram e os que nunca estiveram frente ao Éden
Todos queriam ser seus alunos
Privilégio de uns poucos

Poderia ocorrer a qualquer momento
Para ser presenciada exigia concentração máxima
Era sempre uma surpresa
Expunha e escondia os segredos em frações de segundos

Eu me sentava na primeira fila
E naquele ano
Já usando óculos
Fui o melhor aluno da classe

20.7.09

Minhas coisas e eu


Um dia
Aqui não mais estarei
E estas coisas todas
Que por anos acumulei
Não as terei comigo

Disperse-as para mim
Para que mantenham serventia
E permaneçam vivas

Morrerei feliz
Se a memória do que fui
Prevalecer sobre a do que fiz

17.7.09

Haiku inspiration 15


(para Lúcia Santos)

Lenta mudança
E borboletas viram
Confetes no ar

16.7.09

Em tempo


(para Sebastião Uchoa Leite)

Saio de tua vida
E nada quero comigo levar
Exceto
(se permitires)
Os cacos
(que de mim sobraram)

Argila endurecida

Difícil tarefa
De despertar as mãos do artesão
Que fui um dia

15.7.09

Nouvelle vague


Comemoramos o nosso aniversário de namoro
Indo ao cinema
Como há muito não fazíamos

Permanecemos na fila
Sem pressa
Abraçadinhos
Entre beijos e sutis carinhos

Compramos os ingressos
Para filmes diferentes
Despedimo-nos com beicinhos
E entramos
Ansiosos e contentes

Assistimos ao que escolhemos
Saímos
E nunca mais nos vimos

14.7.09

Embarque


Amar
Amei
Mesmo sem saber se era amado
Quando pude ver
Do alto de minha cegueira
Desabei

Errar
Errei
E nem mesmo sei se fui perdoado
Pelo que fiz quis ser odiado
Pois não me redimi
E tive o meu tempo esgotado

13.7.09

Em nome da vida


(para Renata Palottini)

Viver é cortar pedaços
Do cordão
Aos sonhos
Fantasias
Pessoas queridas
Alforrias
Até a própria vida

Viver é colecionar pedaços
Reaproveitar os cortes
Por outros realizados
Elementos mancos
Personagens alvejados
Colhidos
Cultivados
Por vezes até roubados

10.7.09

Haiku inspiration 14


Fúria celeste
Acorda a saparia
Allegro molto

8.7.09

Não há nada mais triste que um amor estiolado


(para Iacyr Anderson Freitas)

Que precisa de esforço
Para atingir a quem ama

Que desconhece os caminhos
Se estica
Busca a luz
Mesmo sem saber para que lado olhar

Que se arrasta
Enfraquece
E sempre persevera

Até que por fim
Sem forças
Se entrega
E no chão desfalece

7.7.09

Golden gate


(Foto: Neide Rigo)

Parto agora
Para depois não ser partido

Já me basta
Ter sido parido
Sem ter opinado

Hoje sou livre
E por mim decido

6.7.09

Pessoas são tesouros


(para Glauco Mattoso)

Pedras preciosas

Algumas
Aceitam lapidar-se
Outras permanecerão
Brutas para sempre

Ainda assim continuarão
Raras
Únicas

É preciso cuidado
Ao avaliar
Aquilo que se vê

E lembrar que os olhos
Só enxergam
A luz
Que a superfície reflete