30.4.10

Santo Antão vencido


Quando passas
A pedalar ligeira
O teu perfume
Como as ladainhas dos missais
Se derrama pelo passeio
Feito pequeninos cristais

Trilha iluminada
Prêmio da criação
Onde o meu olhar é cativo
E a acompanhar-te é obrigado
Até que desapareças
A caminho do paraíso

Impossível não admirar-te
És livre
És bela
És viva
A consubstanciação do milagre
A consagração da alegria

O que sinto
Não se cala sozinho
Insuportável é o desejo
Amargo o celibatário desígnio
Fogo que arde por dentro
E me faz hesitar no juramento

Concretiza os meus sonhos
Ninfa dourada
Vem para que te possuas
Vênus da praia
Serás deusa em meu altar
E como rainha na casa do supremo hei de te louvar

29.4.10

Nestas paragens tão distantes


O tempo lúgubre e ameaçador
As intempéries tão pouco comedidas
Atingem em cheio os sentimentos
E me fazem querer reviver
Uma situação agora perdida

Tolo imperdoável
Em tempo hábil não percebi
Que o sol nunca se punha
E o verão era perpétuo
Quando estava junto a ti

28.4.10

Antigamente


Andava pelas ruas
Olhando sempre para o chão
Não que fosse um sujeito deprimido ou ensimesmado
Só não entendia a razão

Recentemente
Ao saber o motivo
Confesso
Fiquei mais tranquilo

Um defeito na coluna
Que me é por demais dura e curvada
Fazia enxergar o mundo como mais curto
Sem poder ver até aonde vai a estrada

Via pernas
Nunca rostos
Via pés
E eles quase nada me diziam

Via poça
Onde alegavam oceano
E roda-pés
Cordilheiras imaginando

Tudo isso aos poucos
Foi me entristecendo
Comecei a não aceitar
Viver num mundo tão pequeno

Mas nessa condição
Tinha ao menos um consolo
Mesmo com a limitação
Sempre mantive zelo com o corpo

Pois encontrando latas e papelão
Objetos perdidos ou abandonados
Tudo recolhia
E em alimento era transformado

Não me deixei abater
E assim que entendi a situação
Tratei de meu problema resolver
Aprendendo a caminhar com as mãos

Hoje só consigo ver o que é elevado e distante
Dizem que virei poeta sujeito avoado
Acho que ao sair de um problema outro criei
Agora é a fome que me atormenta um bocado

27.4.10

Pássaros em formação


Afinam a cantoria
Enquanto perseguem
O que ainda resta deste dia

Palavras não nascem poemas


Quando geradas
Devem ser rapidamente sopradas nas ventas
Para que em verso despertem

Um único e enérgico movimento

Mas se não funcionar
Não se lamente
Descarte tudo
E tente novamente

26.4.10

A criação escraviza


Mas também liberta
O artista isto sente
Quando dá o último entalhe na pedra

Com o cinzel posto em descanso
E o polimento iniciado
A vaidade em pó vai se transformando
E o brilho do desapego é despertado

23.4.10

Há uma intransponível distância


Entre o ser e o fato
Pensa o peixe
Observando o mundo
De dentro do aquário

22.4.10

Colapsados caminhos


Quem neste mundo
Ainda anda por trilhos?

Onde estarão os trens (que nos fizeram crer)
Deveriam conduzir nossos destinos?

20.4.10

O poema é folha


Que no outono
Amarelece em silêncio

Mesmo sem querer
Solta-se do galho
E voa no vento

Sempre há de encontrar um chão
Num bosque ou beira da estrada
Comporá o solo
Se em húmus for transformada

Mas se cair sobre as pedras
Exposta ao tempo
E muito pisada
Desaparecerá como se toda uma existência
Não lhe tivesse valido nada

19.4.10

Respostas


Nesses dias de aço
Ser pedra
Torna-se necessário

Nesses dias de água
Ter raízes
É uma vantagem

Nesses dias de ventos
Armar velas
Ajuda um bocado

16.4.10

No amor


O poeta vê poesia
E ser diferente
Não poderia

Vê uma pedra
Que ricocheteia na superfície de um lago
E nesse movimento vê poesia

Vê poesia num perfil
Que tem na ponta do nariz
O brilho de uma gota na iminência de cair

Consegue ver poesia
Numa afta dolorida
Escondida no canto da língua

Vê poesia até
Quem diria
No cocô da galinha

Tem a necessidade de vê-la
Mesmo que esteja escondida no mais estranho tema
Afinal é a poesia que lhe mantém a vida

15.4.10

É possível amar (até mesmo) o que é feito de pedaços


Junte um a um os meus fragmentos
Mas junte com cuidado

Use o instinto
Já que não temos manual ou algorítimo

Estou desjuntado mesmo!

E se tudo de novo funcionar
Será bom para nós dois

É como dizem por aí:
"Se possível, sempre reciclar"

14.4.10

Os mundos todos


Que noite e dia habito
Limitam os meus passos
A cinco

Atenuam a luz
Não me aeram as ventas
Não comportam a minha magreza

Tetos baixos demais
Costas curvadas
Olhos no umbigo cravados

São muitos os ângulos a serem roídos
Tarefa mais fácil
Quando os dentes estão intactos

É preciso inventar a esfera
Agitar-se dentro dela
Rolar morro abaixo

Cair no mar
Ter um barco
Deixar para trás tudo o que é cúbico

Furar as paredes
Rumar à frente usando os próprios braços
Remar sempre

13.4.10

Não tome como definitiva




Esta palavra

Por certo
Mesmo que escrita
Há de mudar

Hoje
É sim
Uma verdade absoluta e lapidar

Amanhã
Pode ser não
E nada
Minha convicção poderá abalar

12.4.10

Por fim


Calaram-se os homens
E nada mais tiveram a dizer

O silêncio
Amordaçou-lhes a indisfarçável mediocridade

Existências infames
Asfixiadas por enovelados discursos

Mentes submersas
Abrigando almas molusculares

Apocalipse do gênero
Peçonha auto-inoculada

Toneis vazios de inútil enchimento
Que nem mesmo notam terem perdido o fundo

9.4.10

Dê-nos só mais este tempo


Ao menos até o fim da tempestade
Confie

Não seguimos qualquer rota
Até o momento

Serão apenas mais três luas
Para que seque a laguna e possamos saber

Se na matéria de que é feito o nosso amor
Continua equilibrado o bem-querer

O poeta


Com o ventre rasgado
Ofereceu suas vísceras
Aos lobos
Para que se fartassem
Se lambuzassem
E que pelos restos
Mesmo os mais insignificantes
Se matassem

8.4.10

Não reclamo


Chegaste aos poucos

E esta casa
Há muito
Já percebo
Não é mais só minha

A tua presença
Em todos os cantos
Pode ser notada
E a tudo se harmoniza

Não encontro justificativa


Para fazer o que faço
Só sinto
Tenho que fazê-lo

À noite
É para nunca mais
Assim me deito

Após um verso
Um abraço
Um beijo

Ao amanhecer
É para todo o sempre
Invariavelmente

7.4.10

A poesia


É minha segunda existência
Tempestade aprisionada na cabeça
Eterna luta entre a flecha e a espada

O reflexo que vejo no espelho
Nada me desperta
Além de estranhamento

Retrato pintado em outra realidade
Cada dia mais fluida
Onde cada vez mais é difícil conectar-me

Vivo


O que me passa pelos sentidos
Penso
Mas não acredito muito nisso

6.4.10

Quando não lhe couberem mais os sapatos


Ou quando o rastro do dedo
Na poeira sobre a mesa
For indisfarçável

Não mais adiantará pedir ao poeta
Que deixe o céu
E volte a ser terra

Digo coisas que nem sei


Não as sei
Porque ainda não as inventei

Invento-as
Para que a mim façam sentido

Se sentido fizerem (saberei que não estou louco)
E algum laço com o mundo terei

5.4.10

És terra


Sou água

Chuva
Que se derrama
Sobre teu corpo

E a todo campo alaga

Só estaremos vivos


No futuro distante
Se justificarmos presença
No passado recente

1.4.10

Semana santa


À porta da igreja
Sinto escorrer pelas escadas
Um insuportável cheiro de medo e parafina

Predominam a escuridão o silêncio
E as expressões vivas ou mortas
São todas de resignação e dor

Um velho se aproxima e deixa escapar seu pensamento:
“Se existir um deus
Por certo não deve estar lá dentro”

Acredito que tenha razão
Pois estaria o supremo
Usufruindo dos frutos de sua criação

Dialogando com o vento
Interessando-se por seus caminhos
E aquecendo a face na luz suave que ainda resta no horizonte