30.9.09

Junto ao penhasco


(para Augusto Massi)

Minha voz vomitada
Ecoa inútil
No vale vazio

Reverbera de pedra em pedra
E como que puxada por um fio
Por meus ouvidos regressa

(Não há como exorcizá-la)

Encaixa-se em minha carcaça
Como num quebra-cabeça
A última peça

29.9.09

Bebemos sempre


(para Carlos Machado)

Ao nascermos
O leite da biologia

Quando crescemos
O vinho da filosofia

Ao morrermos
O sangue da teologia

28.9.09

Predominantemente


(para Carlos Vogt)

É cada vez mais côncava
A mão do mundo

25.9.09

Além do reflexo


(para Beatriz Helena Ramos Amaral)

Tens
Hoje

Na saliva
Sal

24.9.09

Tudo o que vejo


(para Cassiano Ricardo)

Me busca na língua
Um sentido
Molhado de saliva

(Como uma ficha sacada de um arquivo)

Quando encontra é substantivo
Por vezes adjetivo
Nunca pronome possessivo

23.9.09

Seguindo a cartilha


(para Lya Luft)

Se me queres teu
Este é o momento
Já vejo luz lá fora
E não teremos mais tempo

Se te queres minha
Este é o instante
A razão está batendo à porta
E não deve te encontrar hesitante

22.9.09

Ao olhar sobre o muro


(para Cláudio Willer)

Na face do morto
Vejo (apenas)
Atraso de sono

21.9.09

Condição servil


(para Eduardo Alves da Costa)

O tempo não espera
Nunca interrompe sua marcha
Prossegue ligeiro
Dispensa acompanhamento

Corremos o quanto podemos
Mesmo sabendo que não há como detê-lo
Até que fatigados o deixamos escapar
E a justificativa que recebemos:

-Sou escravo de mim mesmo!

Uma fria despedida
E ele assoberbado
Segue sem nada poder mudar
Na sua monótona rotina

18.9.09

Uróboro


(para Heitor Ferraz)

Sair da casca
Hoje
E cavar na água
Um buraco

17.9.09

Exérese necessária


(para Nei Duclós)

Meu pensamento
A ti quis apagar

Escrevi teu nome
Na praia com um graveto

Subi numa pedra distante
E sentado me permiti chorar

Não tardou
Pude ver

As ondas te arrancaram da areia
E livre de mim acolheu-te o mar

16.9.09

Os últmos versos que escrevi


(para J. Antônio d'Ávila)

A mim não pertenciam

Fiz do papel um barquinho
Como os de quando menino
E soltei-os no riacho

No princípio vagaram perdidos
Até a correnteza
E só aí acharam um sentido

Acompanhei-os até a última curva visível
Depois dela apenas podia ouvi-los
Ecoando em uníssono

Um saudoso canto
Na distância seguindo

15.9.09

Quis desenhar-te o retrato


Antes que a tua lembrança
De vez me abandonasse

Tentativas reiteradas fiz
Mas a imagem que em mim ficou
Reduziu-se
A um ponto
Sem rosto
Colocado num dos cantos
Da milésima primeira folha
De papel em branco

14.9.09

Espalho as folhas


(para Fernando Ferreira de Loanda)

Com meus escritos
Ao vento
E observo
Como podem ser
Livres
Meus pensamentos

Algumas folhas
Esbarram nos vincados rostos
Dos passantes apressados
Caem ao solo
Se colam no asfalto
E gravam lá seus mais íntimos conteúdos

Outras são repetitivamente marcadas
Destituídas de sentidos
Pelas digitais emborrachadas
De pneus presbiopes

As últimas
Serão levadas pela enxurrada
Até que o mar as receba
E e as dissolva

Letras soltas
Em solo arenoso
A instruir
Seres abissais

11.9.09

Faltou mulher nesta história


(para David Lean)

Calma
Querida

Amor contigo
Só depois que chegarmos
Ao próximo oásis

Nossos camelos estão sedentos
Eu sei
Temos que nos apressar

Deve estar logo ali
Atrás daquela duna
A mais alta

Espero que não seja outra miragem
Ou informação falsa
Dada pelo último beduíno

Aquele albino esquisito
A quem chamaram de Lawrence

10.9.09

Sentimental reptile


(Para Régis Bonvicino)

Os versos que invento
Depois que os escrevo
Desligados de mim estão
E como meus
Não mais os reconheço
São expurgos e danação
Cumpriram com seu papel
Viro a página e os esqueço

9.9.09

A árvore que plantei em minha calçada


(para Saúl Dias)

Foi do lixo resgatada

Muito cresceu
Ultrapassou a casa
E fez com que as vizinhas
Parecessem mirradas

Quando se carrega de flores
Seus pesados cachos vermelhos
Fazem cair grandes galhos
Danificando fios e carros

Vinga-se do seu passado

Continua crescendo
Não conhece o seu limite
Impõe-se vigorosa
Mas tem o lenho fraco

8.9.09

Piloto e navegador


Na madrugada
Quando acordo

As vezes confuso
Outras com medo

Ao meu lado
Ela dorme

Ressona
Na certeza de quem confia

Oferece as costas
Em desarmada cumplicidade

É sábio o seu instinto
Atendo ao apelo e me achego

Fecho os olhos
Busco um ponto de luz lá no infinito

Procuro afastar
Qualquer pensamento

Não demora muito
E com ela me perco

4.9.09

Curiosa essa forma de viver


Sem considerar o que a natureza
Tanto tempo levou para conceber

Sedativos para dormir
Estimulantes para acordar

Antidepressivos para conseguir sorrir
Ansiolíticos para o entusiasmo abafar

Alimentos demais para engolir
Anfetaminas para a fome cortar

Montanhas de informações para digerir
Brutal ignorância e palpite sobre tudo ter que dar

Internet para tentar interagir
Falsos perfis para seres reais não ter que encontrar

Sexo fácil para as exigências da carne abolir
E vazio que só faz aumentar

A civilização transformou o mundo
Impôs a tirania da luz
Do barulho e movimento

A cidades nunca param
As mentes não se desligam
Tudo que os olhos veem já foi distorcido

Noite
Que mesmo escura
É dia

Estão proibidos
A dor e a tristeza
A frustração e o não

Aceite e entorpecimento
Tendem a ser regra
Não exceção

A harmonia
Se perde
E a vida adoece

3.9.09

Não faz sentido


Apenas quando ouvir
Desta tua voz
Trêmula e rouca

Que
De verdade
Não mais
Me queres

Que
Me queres
Longe

E que minha presença
Aqui
Apenas te fere

É que farei
O que me pedes

2.9.09

A evolução privilegia os híbridos


Quando me perguntam
Se minha cachorra é de raça
Respondo que sim
De muitas
É o ser mais multirracial que conheço

1.9.09

Cuidados paliativos


A concha
Afunda no caldo denso
E liberta o vapor
Que se eleva lento

A sopa
A garganta esquenta
E acalma esse frio terrível
Que na espinha atormenta