25.8.10

Excesso de uns

Eucileide única filha
De mãe solteira (já falecida)
Criada por uma tia
Que (dizem) hoje mora na Argentina

Deixou as fraldas antes mesmo de andar
Aos onze comungou
E na faculdade nem um semestre chegou a completar
Nunca mais estudou

Perdeu a virgindade logo com o primeiro namorado
Depois de um aborto não quis mais estabelecer laços
Sonhava engravidar quando fosse o momento
Mesmo sem útero e com um só ovário

Representante comercial autônoma
Trabalhava em casa e por telefone
Uma kitchenette alugada na Maria Antônia
Apartamento 111

Das poucas vezes que a ouviram falar
Disse de forma autômata: “um é regra
Dois é ditado de palito apressado
E três é excesso de uns”

Adotou um gato e deu-lhe o nome de Felindo
Nunca foi vista com qualquer outro
À noite davam conta sempre rindo
De uma garrafa de vodca com leite de coco

Desde menina
Fumou de modo inveterado
Pelos vizinhos era percebida
Apenas por sua tosse e pigarro

Tentou fazer um diário
Onde muito pouco anotou
Não havia novidades no seu itinerário
Em uma página resumiu tudo que se passou

Cama de solteiro
Antes da meia-noite estava sempre deitada
Acordava uma vez para ir ao banheiro
E com o sol nascendo saia para uma caminhada

Pela manhã
Café puro nunca adoçado
E pão na chapa
De um só lado tostado

Apenas uma refeição por dia
Almoçava ou jantava
Na hora é que escolhia
Quase sempre alternava

Na televisão
Por programas religiosos e jornalismo tragédia
Tinha especial predileção
Não dispensava também uma boa novela

Gostava dos filmes de antigamente
Fred Astaire sua paixão
Na padaria pedia sempre
Queijo Minas no pão de forma e suco de limão

Leitora de livros de auto-ajuda e revistas de futilidades
Colecionava as páginas de gastronomia
Sabia dos famosos as intimidades
E não tinha para com as panelas qualquer simpatia

Um dia acordou decidida a mudar
Começaria pintando as paredes
E sua relação com a vida iria transformar
Mais cores no ambiente novos ornamentos e tapetes

Comprou materiais e tintas
E pôs-se a tudo modificar
Empolgada com a iniciativa
Sentiu até seu humor melhorar

Notou que sua única janela há anos esquecida
Estava com cremalheira e dobradiças engripadas
Vencida a dificuldade em abri-la
Surgiu-lhe como recompensa uma pequena sacada

Tamanha luz e barulho no apartamento
Chamaram do gato a atenção
E do acontecido nada entendendo
Projetou-se cegamente em direção ao clarão

A grade de ferro com ornamentos vazados
Não segurou a frágil criatura
E antes que pudesse recuar os passos
Mergulhou em queda livre em direção à rua

Ao presenciar a tragédia iminente
E sem controlar o instinto
Tentou alcançá-lo desesperadamente
Mas apenas pode observar seu amigo caindo

O peso da moça
O parapeito não conseguiu conter
E sobre o corpinho estraçalhado do bichano caiu sua dona
Que ainda o sol se apagando teve tempo de ver

Pelo serviço funerário recolhida
Sem nenhum agregado ou parente
Com o corpo desfigurado e a Felindo pela carne unida
Foi enterrada como indigente

Hoje identificando a sepultura há apenas um pedaço frio de ferro fincado
Com os números da pagina e respectiva linha a ser consultada
Do livro de registro dos ali enterrados
Onde podem ser lidos seu nome e data de chegada

Nenhum comentário: