Eucileide única filha
De mãe solteira (já falecida)
Criada por uma tia
Que (dizem) hoje mora na Argentina
Deixou as fraldas antes mesmo de andar
Aos onze comungou
E na faculdade nem um semestre chegou a completar
Nunca mais estudou
Perdeu a virgindade logo com o primeiro namorado
Depois de um aborto não quis mais estabelecer laços
Sonhava engravidar quando fosse o momento
Mesmo sem útero e com um só ovário
Representante comercial autônoma
Trabalhava em casa e por telefone
Uma kitchenette alugada na Maria Antônia
Apartamento 111
Das poucas vezes que a ouviram falar
Disse de forma autômata: “um é regra
Dois é ditado de palito apressado
E três é excesso de uns”
Adotou um gato e deu-lhe o nome de Felindo
Nunca foi vista com qualquer outro
À noite davam conta sempre rindo
De uma garrafa de vodca com leite de coco
Desde menina
Fumou de modo inveterado
Pelos vizinhos era percebida
Apenas por sua tosse e pigarro
Tentou fazer um diário
Onde muito pouco anotou
Não havia novidades no seu itinerário
Em uma página resumiu tudo que se passou
Cama de solteiro
Antes da meia-noite estava sempre deitada
Acordava uma vez para ir ao banheiro
E com o sol nascendo saia para uma caminhada
Pela manhã
Café puro nunca adoçado
E pão na chapa
De um só lado tostado
Apenas uma refeição por dia
Almoçava ou jantava
Na hora é que escolhia
Quase sempre alternava
Na televisão
Por programas religiosos e jornalismo tragédia
Tinha especial predileção
Não dispensava também uma boa novela
Gostava dos filmes de antigamente
Fred Astaire sua paixão
Na padaria pedia sempre
Queijo Minas no pão de forma e suco de limão
Leitora de livros de auto-ajuda e revistas de futilidades
Colecionava as páginas de gastronomia
Sabia dos famosos as intimidades
E não tinha para com as panelas qualquer simpatia
Um dia acordou decidida a mudar
Começaria pintando as paredes
E sua relação com a vida iria transformar
Mais cores no ambiente novos ornamentos e tapetes
Comprou materiais e tintas
E pôs-se a tudo modificar
Empolgada com a iniciativa
Sentiu até seu humor melhorar
Notou que sua única janela há anos esquecida
Estava com cremalheira e dobradiças engripadas
Vencida a dificuldade em abri-la
Surgiu-lhe como recompensa uma pequena sacada
Tamanha luz e barulho no apartamento
Chamaram do gato a atenção
E do acontecido nada entendendo
Projetou-se cegamente em direção ao clarão
A grade de ferro com ornamentos vazados
Não segurou a frágil criatura
E antes que pudesse recuar os passos
Mergulhou em queda livre em direção à rua
Ao presenciar a tragédia iminente
E sem controlar o instinto
Tentou alcançá-lo desesperadamente
Mas apenas pode observar seu amigo caindo
O peso da moça
O parapeito não conseguiu conter
E sobre o corpinho estraçalhado do bichano caiu sua dona
Que ainda o sol se apagando teve tempo de ver
Pelo serviço funerário recolhida
Sem nenhum agregado ou parente
Com o corpo desfigurado e a Felindo pela carne unida
Foi enterrada como indigente
Hoje identificando a sepultura há apenas um pedaço frio de ferro fincado
Com os números da pagina e respectiva linha a ser consultada
Do livro de registro dos ali enterrados
Onde podem ser lidos seu nome e data de chegada
25.8.10
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