30.4.09

Essa tal Poesia


(para Lupe Cotrim)

Me acorda na madrugada
Exige luz baixa e porta trancada
Para expor segura
Toda a sua anatomia

Acordo surpreso
Avalio cada parte
E experimento ainda confuso
As combinações mais improváveis

Por fim satisfeito
E vencido pelo trabalho
Me ponho a admirá-la
Inteira ao meu lado

Nossa respiração
Agora suave
Cicla
No mesmo compasso

Me rendo ao sono inevitável
Segurando-a na mão
Tentando trazê-la para o meu sonho
E prolongar um pouco mais este encontro

29.4.09

Pacem in Terris


(para William Blake)

O lagarto
Não come
O ovo da serpente

Em respeito ao parente

A serpente
Não come
O ovo do lagarto

Desde que haja rato

28.4.09

Uma (por demais) longa ausência


(para Cacaso)

Encontrei minhas cartas
Confinadas na gaveta
De tua penteadeira

Um maço amarrado com fita vermelha
Ainda com os envelopes
Selados e mudos

Aguardavam entre cremes vencidos
Batons sem tampa
E pinças enferrujadas

As escovas foram mais gentis
Me devolveram uns poucos fios roubados
Pedacinhos de ti que nunca imaginei reaver

Um vidro de remédio
Rolou ao ser tocado
E deixou escapar
Um tilitar quase inaudível

Melhorei a luz
E mais uma vez provoquei o frasco
A superfície âmbar
Não pode ocultar o que vi

Lá estava ele
Repousando tranquilo sobre o algodão
O nosso anel de noivado

27.4.09

Puzzle


(para Maurício Pereira)

Cravo meus dentes
Famintos
Na tua carne clara

De ti
Quero apenas
Mais um naco

Recolho o que me é de direito
E limpo a face
Com sangue tatuada

Despeço-me do que de ti restou
Com um beijo
Mais nada

24.4.09

Tema e variações 3




(de Carpinejar)

Para a morte, sofro de um problema
Não estou em um único lugar.

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(para Carpinejar)

Não me é possível
Morrer hoje

Ainda preciso
Juntar os pedaços

23.4.09

É para o norte que aponta a agulha


(para Micheliny Verunschk)

Noite alta
Retorno ofegante
Pés suspensos nas meias
Luz nenhuma

Ouço-te apenas suspiro
Deito-me ao teu lado
E no colchão viciado
Para o centro deslizo

Coincidem pontos e espaços
Página após página
Como em nosso diário

Sim amor
Estou aqui
Mais uma vez não consegui fugir

22.4.09

Faltou-me jeito


(para Hilda Hilst)

Minha boca
Sedenta e impulsiva

Tocou bruscamente
Teu sentimento

Violência
Carnal e desmedida

17.4.09

Educando com carinho


Quanto não
Na vida de um cão

16.4.09

O livre curso de um rio


(para Chacal)

Não é possível ser
Por todo o tempo
Contido

Impedido
Da mordida impulsiva
Primitiva abordagem

Nem da mastigação pouca
Da respiração entrecortada
E do engolir apressado

Por vezes é melhor fazer
Raciocinar depois
E pedir perdão se preciso for

15.4.09

Quando os nossos humores se encontram


Não resta mais
O mínimo espaço entre nós

Quisera que este momento
Nunca acabasse

14.4.09

Espólio


Nossas lembranças comuns
Foram guardadas
Em diferentes lugares

As suas depositadas num porão escuro
Dentro de baús fechados
Hoje cobertos por uma grossa camada de poeira

As minhas seguiram para o sótão
Estão penduradas em cabides
E prontas para o uso a qualquer momento

13.4.09

Haiku inspiration 12


(para Manoel de Barros)

Seta poente
Pássaros em formação
Finda jornada

9.4.09

A grande ilusão



Nos imaginamos preparados
Mas não o estamos de fato
A morte nos assusta um bocado
Quando se senta à mesa
Oferece-nos uma bebida
E tenta iniciar um diálogo

8.4.09

Caminho esquecido


Nossas facas sem fio
Acumulam-se nas gavetas
Sobre a pia
Penduradas na bancada

Se há algo de que não precisamos
É de novas facas

7.4.09

Um tempo para cada coisa


(esculturas de Luiza Sandler)

A varanda
Com um par de cadeiras voltadas para a rua
Espera sua vez de nos receber
Na hierarquizada cronologia dos cômodos de nossa casa

6.4.09

Tema e variações 2


(de Francisco Alvim)

Onde trabalho

Não gosto de lá
Me faz sentir pior do que sou

-----------------------

(para Francisco Alvim)

Onde trabalhei

Fui pior do que sou
Quero esquecer

3.4.09

No outono recordar


A primaVera
De quando em vez
Aparece

Sempre muito exibida
Gosta de ser vista
E por isso
Desfila

Pensa que tudo sabe
Quando me pega pela mão
Para ensinar detalhes
Sobre suas cores e partes

É muito expressiva
Quando propõe adivinhações
De gostos e aromas

Brinca de forma esquisita
Cada dia que passa
Gosto mais de suas visitas

2.4.09

Trabalho de menino


Naquele tempo
(supostamente)
Não existia
A culpa

Bastava ficar sobre a ponte
E observar o aparecer intermitente
Na superfície da água

Os miados
Iam se tornando raros
E mais uma ninhada
Seguia
Rio abaixo

1.4.09

De rerum natura


Mulheres são como torneiras
Precisam ser manuseadas
Com delicadeza

O problema é quando as vemos
Tratarem suas torneiras
Como rivais