31.12.08

311208


Espelhos por toda parte
Quase meio século com os pés no chão
A cada dia um novo sulco escavado no rosto
Mais e mais tristonho e escorrido
Sobre minha teimosa arquitetura

Happy new year!

22.12.08

Toc Toc


No amor
Não se pode exagerar na assepsia

17.12.08

Sing Sing


De onde estou
O sol só não nasce quadrado
Porque o ângulo não permite
Para ter acesso à cena
Seria necessário um giro de 48° no edifício
O duro é que não tem mais jeito
Houve um erro de engenharia
Na instalação do astro rei

16.12.08

Haiku inspiration 2


Dia abafado
Corpo líquido asfalto
Rondam urubus

15.12.08

Lieder


Não é possível tocar-te mesmo que por um instante
Consigo apenas ver-te desenhada em memórias

O presente é só ilusão
Tudo de fato ficou no passado

Não sinto tua pele nas pontas de meus dedos
Ainda que percorra tuas costas longas

Mesmo inebriado não mais encontro o teu cheiro lascivo
No lençol amarrotado posto de lado

São só lembranças
E um frio que marmoriza o meu corpo

Enfia goela abaixo a razão
Prende mãos e pés e impede a fuga

A certeza de estar só dói nas entranhas

12.12.08

Eferências


Por trás dos meus olhos
Os diques têm muros frágeis
Trovões e relâmpagos
Anunciam torrentes e pensamentos

Sem que se consiga evitar
Chovem
Chovem
E obrigam a abertura das comportas

Os espaços se inundam
Incham-me os braços
E infiltram-se meus dedos imantados
Que passam a percutir o teclado
Com fúria

A busca é por calmaria
Ao menos por um momento
Até que desabe outra tempestade

11.12.08

Haiku inspiration 1


Verão poente
Úmida ventania
Canta só a rã

10.12.08

Súcubus & Íncubus


Sincero consigo ser
Ainda que recluso nesta cela
Sem ângulos
Onde os pensamentos apenas rodam
Intocáveis acima da cabeça
Com as mãos em concha bebo a luz conquistada
Ao alargar com os dedos a fresta cavada entre os tijolos
Imagino o céu
Dispensário de minha lucidez
E o obrigo a visitar meus sonhos todos os dias
É a chance que tenho
De estar vivo ao final deste inferno

9.12.08

Marteladas do destino


Gustav Mahler surpreendia as platéias colocando em algumas de suas obras duas ou três sonoras e pungentes marteladas.
Os biógrafos sempre atribuíram-nas a motivos muito específicos como a perda da filha, o desemprego e a doença cardíaca. Mas, hoje, há uma nova versão que corre os bastidores do mundo dos concertos, afirmando que a intensão do compositor era mesmo a de vingar-se do pai, o Sr. Helmut, ferreiro de ofício, que obrigava o jovem Mahler a atiçar o fogo e a varrer a oficina enquanto ele trabalhava ferozmente no malho. Produzia ruídos enlouquecedores e não cedia aos apelos do garoto que, aos prantos, suplicava-lhe que o deixasse sair ao menos durante suas abomináveis crises de enxaqueca.
Assim que conseguiu independência financeira, empregando-se como músico autônomo em um cabaré nos arredores do povoado em que moravam, passou a executar seu plano de vingança ensaiando as tais contundências madrugada adentro embaixo da janela do genitor.
Constance, sua irmã, registrou em diários, que a grande prejudicada nesta querela familiar foi a mãe, a Sra. Ingrid, pois Helmut, já completamente surdo pela profissão, dormia como uma rocha sem se dar conta das inúteis investidas sonoras do pimpolho. Já a matriarca, sofrendo em silêncio e ensandecida após a décima oitava noite seguida sem dormir, não resistiu à tortura e deu cabo à própria vida ao defenestrar-se do sótão, numa véspera de natal, projetando-se sobre o filho que deste episódio acumulou vários e graves ferimentos. Isto explicaria a dúvida que até hoje persistia sobre os reais motivos de sua marcha coxa e voz rouca praticamente inaudível.
Gustav jamais se recuperou da culpa e amargou o resto de sua vida uma atitude sorumbática e reclusa. Mesmo isto não o impediu de nos deixar um prolífico e denso legado musical.

8.12.08

Afortunoso


Sempre assim
Juntinhos
Cúmplices em tudo
Papai
Mamãe
Fifi
Meu lastro e sanidade

5.12.08

Preservando a intimidade ou despedidas são sempre comoventes


Manhã de sexta-feira. Frio fora de época e preguiça confessa. Meu benzinho doentinha, um pouco de preocupação, cansaço acumulado e o corpo..., como pesa!
Um último abraço. Mais uma bitoquinha e vamo lá! Fazer o que, né?
Após o ritual, de praxe, precisamente cronometrado e automatamente cumprido, desço para a próxima etapa.
Decidir o que comer é um eterno desafio, mas sub-repticiamente sempre opto pelo mais prático. Afinal, aqui em casa, este assunto é de outra pessoa. Questão de respeito!
Abrí a geladeira, ainda sonolento, mas a visão ofuscada não me impediu de vislumbrar um instantâneo de rara beleza. Um desses encantamentos que temos a sorte de sentir e que conseguem nos iluminar a alma já no início de um dia que seria como outro qualquer.
É que as batatas, reservadas para a sopa de logo mais à noite, estavam juntinhas e docemente se beijavam.
Sabiam que não ficariam lá por muito mais tempo e queriam perpetuar ao máximo esses seus últimos momentos de cumplicidade. Nem pareciam se importar com minha súbita intromissão, com o aliche escondido ao fundo ou com os olhares severos dos ovos, claustrofobicamente acomodados em seus respectivos nichos.
Com lágrimas nos olhos, respeitei o momento. E, tentando não ser notado, recolhi o que procurava e fechei porta, bem devagarzinho...

4.12.08

Desventuras de um samurai ou dos iminentes percalços de uma mudança profissional


Tradução aproximada de um antigo texto encontrado durante a desmontagem de um templo Xintô na pequena vila de Iwama, Japão.
Embora os caracteres estivessem praticamente indecifráveis diziam mais ou menos o seguinte:

A espada está na essência do Do
Ela corta e perfura
Penetra e rompe couraças
Liqüefaz a audácia dos que se arriscam a testar seu fio

Só deve ser usada dentro dos preceitos do código

Como todo instrumento marcial
Tem vida própria
E só responde aos comandos
Se servir como ferramenta do espírito

Quando isto não acontece
Volta-se contra seu dono
Exige-lhe humildade e resignação
Forçando-o a ter que digerir
Aquilo que jamais pensou precisar engolir

2.12.08

Ensamble


Amorzinho
Acorda vai
Sou eu chamando

Preciso que entre no meu sonho
Mas tem que ser agora
Temos que estar juntos nisso

Se acaso eu despertar
O encanto se quebrará
E aí estarei perdido

Serei como um sonâmbulo
Trazido à realidade
Desorientado
Que em nada mais vê sentido

1.12.08

Os vegetais herdarão o planeta


A despeito do que falam os ambientalistas a espécie humana não caminhará sobre a superfície da terra por muito mais tempo e no futuro as plantas dominarão o mundo.
O reino vegetal é autônomo, tem suas próprias leis e age de forma implacável.
Outrora a crosta era tomada pelos saurópodes herbívoros gigantes, que além de consumirem uma enormidade de matéria vegetal também mantinham-se dominantes ao pisotearem grandes áreas durante seus cursos migratórios. Infelizmente foram extintos de forma trágica e o resultado foi inevitável. Passados uns poucos milênios lá estavam elas novamente, as plantas, com total controle da situação.
Hoje, felizmente ainda temos a agricultura, a exploração predatória das florestas, e diversas outras valorosas ações que constituem-se em grandes esforços, por parte de nossa espécie, para que possamos manter uma razoável vantagem frente a esta grande ameaça que sempre nos está à espreita. Mas é um equilíbrio frágil e no longo prazo possivelmente sucumbiremos à lei natural.
A confirmação desta teoria é relativamente fácil de ser feita. Pode-se observar o fenômeno a partir de um simples e pequeno experimento domiciliar.
Abandone sua casa ou jardim à deriva por um mês. Não permita que ninguém adentre ao ambiente deixando que as forças da natureza ajam de forma completa e espontânea.
Após este período retorne, observe o cenário e anote detalhadamente os achados.
Certamente verá que as plantas terão tomado conta de tudo. Bloquearão os caminhos, emergirão das fissuras do concreto, bloquearão janelas e portas. Cumprirão livremente as etapas de todo o seu ciclo vital formando húmus, podridão e sombra.
São implacáveis e não perderão a oportunidade de exercer seu domínio se assim lhes for permitido.
Após a constatação e o registro dos achados a atitude a ser empreendida tem que ser necessariamente radical.
Estabeleça uma estratégia para enfrentar sem demora e diretamente o inimigo.
Baseado em minha experiência sugiro o seguinte plano de ação:
Numa raiz mais insinuante, golpeie-a com o machado, mas tenha cuidado com seu pé. Um arbusto já fortalecido deve ser posto abaixo com o uso de uma foice, mas observe cuidadosamente se sua mulher não está em silêncio atrás de você. No tapete de gramíneas e daninhas que lhe subiu acima dos joelhos passe a tesoura sem dó nem piedade.
Para tratar de trepadeiras um pouco mais atrevidas, use luvas e arranque-as com as mãos mesmo. Brotos, pequenas touceiras, suculentas, pragas e espinhudas em geral, exigem luvas e um cuturno, pise-as e espalhe-as sem se deixar tocar pelas emoções.
Arremate tudo com um bom cortador de grama, rastele, ensaque e ponha todos os cadáveres para fora de casa.
Na primeira oportunidade que tiver cimente todas as áreas livres de seu quintal. Não se pode permitir a existência de qualquer pequena área que seja de terra desnuda. Lembre-se que a vingança pode vir pelas costas e a qualquer momento.
Agora, caso seja tarde demais e o entrelaçamento das espécies efetivamente tenha conseguido mantê-lo fora de seus antigos domínios. Não hesite, despeje gasolina e ponha fogo em tudo. O sacrifício não será em vão, pois fez o que era preciso e assim poderá dormir tranquilo.