23.12.09

Um reggae de natal



(para Henrique de Carvalho, jovem e inocente, em coma, agredido aleatoriamente na mais insólita das situações)

Você que não me conhece
Saiba que sou assim mesmo
Um sujeito meio esquisito
De difícil entendimento

Mas não é só seu o privilégio
Também a mim causo estranhamento
Então é melhor esclarecer logo alguns fatos
Para não engordar ilusões no seu pensamento

Não tenho fé
Não creio em sobrenatural
Força suprema acima do meu pé
Destino ou o escambau

Me tranquiliza pensar que a biologia
Resulta do sexo bom entre a física e a química
E a matemática como ideal analista
A tudo de alguma forma responde e explica

Acredito na ética
Quero respeito e também ao meu igual
Mesmo se isso for para pedir
Um golpe de misericórdia no final

Estou consciente da minha monumental ignorância
E neste mundo não me encaixo
Sinto como se tudo que vejo fosse fantasia
Inclusive eu (nascido em tempo errado)

Sou tão culpado pelas tragédias humanas
Como o mais nefasto dirigente
Fraco e incapaz de alterar as demandas
Pela lama me arrasto triste e continente

Mas não me excluo também de ter alegrias
Principalmente quando junto dos que amo
Sei bem que é por sentimento nossa parceria
E a cumplicidade nos faz bem embora insanos

É por isso meu bom amigo
Que quero lhe presentear com a certeza
De que não foi por vontade própria que vim pelas costas
E com um taco de baseball lhe golpeei a cabeça

22.12.09

Lagarta


Voraz comensal
Não acha graça alguma
Ao ver aproximar-se o menino
Com seu pote de sal

Verão em São Paulo


O rio do esgoto virou calha
A várzea não é mais que duro chão
Hoje nem chorar se pode
Há risco de inundação

21.12.09

Sertão


De luz e ilusão
Que nem a todos engana

As pedras
Queimam e se movem

O lagarto
Deixa o rastro

E o falcão
Repousa saciado

Pela manhã


No espelho
Expressão sem sentimento
Dia a dia
O mesmo ritual

Tirar da face
Vestígios (talvez os últimos)
Capazes de me fazer lembrar
De uma natureza que é só animal

Claustro mundo


Como é profundo o teu umbigo!

14.12.09

A lua brota no outro horizonte


Arma uma ponte de luz
Que me atinge em cheio
Deste lado do lago

Corro e me abaixo
Mas não há como escapar
Do cordão prateado

Me puxa impondo o caminho
Vou sem resistir
Hipnotizado

11.12.09

No lago


Silencioso e limpo
Um traço
Em desespero
Risca o vidro

Corre pelos lados
Ricocheteia no escuro
Bate a cabeça no limite do espaço
Em que foi restrito

Arranha o fundo
Gasta unhas e presas
Até que exausto
Se dá por vencido

Inconformado urra e suspira
Move-se por puro hábito
Instinto selvagem
Num aquário contido

Tenho inveja dos que gritam


Dos que baixam a febre
Navios com porões sem lastros

Diminuem a tensão
Para continuarem vivos

Tenho uma rolha entalada na garganta
E as entranhas todas dilatadas

De complacência ilimitada
Me é impossível explodir

7.12.09

Cada vez mais vejo


Que preciso estar só
Eu e o silêncio

Sem imagens

Só por cada vez mais tempo
E em silêncio

Sem pensamentos


Silêncio

Da vida


Não duvido
O que me é possível
Vivo

A poesia


Não tem lastro nos fatos
Independe do ser
Desrespeita o não
Só permite o talvez

Por não poder mais nada dizer


Colocou a roupa
E silenciosamente
Retirou-se da cena

Precisou estar só
Para extrair do discurso o vazio da palavra
E resgatar-lhe o gosto

Entender o que é vivo lá dentro
Bem no fundo
Saber se ainda resta algum sentimento

Tenho algo contra descer escadas


Pernas incompletas
Chão dos pés fugitivo
Sempre a me faltarem os últimos degraus

Em tal situação
Paro
Por vezes salto e me arrisco

Outras recuo
Mesmo sem querer
Sabendo que não deveria voltar

Basta um grito


Noite
De um negro profundo
Que dispensa ouvido e visão

Esgota a existência
E preeenche com o nada
Tudo

Nos coloca perdidos
Num eco infinito
De fácil constatação

Basta um grito

Escrevo


Para salvar vidas
(Muito provavelmente a minha)

Frente à vida


Não guardo em segredo
Os meus dentes

O abandono


Nada mais é do que a procura
Olhando-se no espelho

Se permaneceres por um tempo parado


Absolutamente imóvel
Num mesmo ponto
Com os pés fincados no solo
Por certo deles emergirão raízes

Se mais algum tempo passar
E seiva por teu corpo começar a correr
De tua boca e narinas
Galhos com folhas e até mesmo frutos irão nascer

Não te reconhecerás no espelho
Deixarás de sentir a falta dos teus
E te darás por satisfeito
Com aquilo que a terra te deu

O universo te parecerá pequeno
E as lembranças de ti expurgadas
Flutuarão em teu entorno na forma de oxigênio
Atmosfera pura e renovada

E o que merecer ficar
Neste teu arranjo modificado
Útil precisará ser
E na forma de açúcar ficará guardado

A tristeza


É meu estofo
Mas o desejo
É de alegria
Só me falta a certeza
E o esforço

23.11.09

O cansaço


É inimigo da criação

A mediocridade
O grande risco

E o tédio
O pior dos venenos

20.11.09

Encontrei o piano



Por décadas no porão esquecido

Hibernava coberto por caixas
E uma espessa camada de poeira

Tocar-lhe a madeira (de imediato)
Fez-me devolvê-lo à sala
E ouvir desfilarem no ar
Os mesmos sons
Que um dia vestiram de vida a nossa casa

19.11.09

Os cães de minha rua


Sempre tão audazes e ruidosos
Nesta madrugada
Silenciaram abruptamente

A isso seguiu-se uma rajada de ventos
E um emaranhado de luzes riscou-lhes as retinas

Recolheram-se assustados
Com as vozes sufocadas
Por monstros invisíveis e roucos

Em sua sabedoria
Foram unânimes em concordar
Que em noite de tempestade
A morte é quem faz a ronda
E é melhor manter seu olhar do lado de fora

18.11.09

Dormir até durmo


(para Eliana Rubim)

Mas não me abro
Aos sonhos

No momento
Isto seria exigir muito

17.11.09

Um descuido da memória


(para Virna Teixeira)

E o relógio de bolso
Entra pela janela
E instala-se sob a cama

Interrompe seu trabalho
Para não mais ser ouvido

Não há como vê-lo
Mas continua lá
Eu sinto

16.11.09

Dê-me a chave da noite


(para Orides Fontela)

Só o horizonte faz algum sentido
Fomos vencidos pela solidão
E agora dormir é preciso

13.11.09

O último paralelepípedo de minha rua


(para Maria Helena Sato)

Não permiti
Que fosse pelo asfalto soterrado
Trouxe-o para casa
Como um troféu conquistado

Bloco ígneo
De granito cinza e pesado
Moldado ao longo de eras
E muito útil para na cabeça de alguns ser lançado

Ponteado de pequeninas luzes
Incrustações de quartzo
Delicadamente espalhadas
No amorfo substrato

Lembrança de um tempo
Em que a terra (um pouco menos generosa)
Não tinha seus poros vedados
Por nenhuma manta betuminosa

12.11.09

Algumas dores secretas


(para Ana Cristina Cesar)

Me apontam
E avisam:
- Ainda estás vivo!

11.11.09

A dor que habita o poema


(para Mário de Sá Carneiro)

Quando lavrada em documento
É como uma promissória
Que no cartório depositada
Em sua devida hora
Há de ser executada
Com suas respectivas taxas e emolumentos

10.11.09

Naquele instante


(para Sylvia Plath)

Sem embaraço ou controle
Minha mão encontrou-lhe o joelho
E de lá recolheu gotículas de orvalho

Delicadas porções de calor
Temperatura boa
Tão surpreendente quanto (previamente) desejada

9.11.09

31,2°C


(para Neide Archanjo)

Inadmissível calor noturno
Que cozinha até mesmo as vontades

Sem alcançar o sono
Só me restam os problemas do mundo resolver

Por que trabalham tando os insetos
E até tão tarde?

Aqui deitado sem um músculo mover
Sou quem decide pelo destino desses pobres alados

6.11.09

Durante sua ausência


(para Mia Couto)

Não esqueci
Nem por um dia
O jardim de molhar

Mas as plantas estiveram chorosas
Insatisfeitas
Pareceram de minha intenção duvidar

Ouvia por todo o tempo um lamento
A queixa de que aquela água apesar de farta
A verdadeira sede não conseguiria saciar

5.11.09

Minha palavra


(para Pedro Cezar)

Não se aceita rígido espelho

Molda o reflexo
Na superfície do lago
Como ondas em alvo

É intérprete da pedra
Que lançada
Atinge um ponto preciso
Penetra no corpo líquido
E cumpre a sina
De ir ao fundo
Para adormecer no silêncio

4.11.09

Haiku inspiration 17


(para Alice Ruiz)

Sol matutino
Brilho mofadomuro
Lesmadrugada

3.11.09

Filhos


Túnel longo
Muitas curvas
E uma promessa de luz

30.10.09

Já voltei para casa quatro vezes


Torturado pela incerteza
De ter desligado
Ferro
Rádio
Lâmpada
E fogão
Agora é a porta que me prende
E enquanto conversamos
É somente ela que vejo em minha frente

29.10.09

A tristeza


É tímida
Porém disfarça sua vergonha
Usando de algumas estratégias

Pode se apresentar
Como verborragia oca
Olhos desviados (inspirando recato)
Educação excessiva
Ou uma aparente indiferença

Mas ao se ver sozinha
E de tudo cansada
Sente-se de fato amparada no silêncio
Lágrimas e recolhimento

28.10.09

Cansei


De apenas ver a paisagem

Recolho todo o fio dos carretéis
E com olhos de dentro
O passo voltado para trás
Desfaço a miragem

Muitas são as pegadas
Mas em poucas meus pés se encaixam

27.10.09

Um poema parido


Jamais é terminado
Sempre parecerá imperfeito
Precisando ser retocado

Mas em algum momento
É preciso cortar os laços
E para fora empurrá-lo

Do contrário
Os ferros continuarão atados
E sempre que for olhado
A mão descumprirá o combinado
Mudará o escrito
E até mesmo
(Deliberadamente)
O sentido

26.10.09

Temo


Por este seu olhar
Que muda de cor
A depender do tempo e humor

Varia do azul anjo
Ao verde amigo

Do amarelo desprezo
Ao fervente vermelho

Na madrugada acalma-se
Num negro silêncio

A confusão se estabelece
Quando cada olho
Decide ter um tom independente

23.10.09

Unus testis, nullus testis


Toda fotografia
Falha
Como também
Falha
Toda palavra

Reduzem o universo
Ao olhar de quem viu
Deixando escapar
O que não comporta a moldura

Penduram no pano de fundo
Toda figura
Tudo

Monóculos míopes
Que não se enxergam rascunhos

22.10.09

Os cães


Podem urinar e defecar
Em hora e lugar
Previamente determinados
E gostam disso
Torna-lhes a vida mais fácil
Basta condicioná-los

Mas
É de suma importância
Sempre
Depois do serviço completado
Recompensá-los
Um biscoito por vez já é suficiente

Assim
Abanando alegremente seus rabinhos
Continuarão a urinar e defecar
De forma disciplinada
Conforme lhes foi ensinado
À espera da ração diária

21.10.09

Não há como não se emocionar


(para Dulce Horta)

O traço ingênuo e sábio
Que o complicado tão bem explica

Do ar
Ao mar

Do fundo do mundo
Ao que se vê do mundo dos outros

Do calor que sobe
À água que desce

Da volta que o tempo dá
E sempre volta diferente

20.10.09

No laboratório


(para Henri Matisse)

A noite
Passa
(Mas não)
Passa
A noite

A curiosidade da língua
A umidade convidativa das veredas
A observação séria do naturalista
A respiração florida

O frêmito
O sal
O corpo desfalecido após o experimento
O sono merecido

Ah, que glorioso algoritmo!

19.10.09

Te aceitarei de volta


(para Dora Ribeiro)

Servida numa bandeja
Inteira
Dispensando a maçã

Comprometo-me a ser delicado
Usar corretamente os talheres
E respeitar a etiqueta

Mas sob uma condição:
Não sentarei com mais ninguém à mesa

16.10.09

No bar


(para Ana Cristina Cesar)

Me aproximei de ti
Com minha palavra pouca
E falta de jeito para fazer rir

Deixando escapar pensamentos:
- De que me serve ser (aqui) assim deste jeito?

É claro que nada entendeste
E assustada
Viraste para o outro lado corpo e razão

E eu
Me acabei ali parado
Com dois copos de bebida na mão

15.10.09

Um dia


(para Eucanaã Ferraz)

Quis morrer
Esvaziei as gavetas
E joguei fora todo o escrito que encontrei
Mas isto de nada adiantou
Não consegui matar o demônio
Que aqui dentro continua se mexendo
Prova maior são estas palavras teimosas e lisas
Que escorrem por entre os dedos
Caçoam de mim
E seguem por aí vivas

14.10.09

Sou aquele


(para Raquel Gutiérrez)

Que vive a procurar interruptores
Para acender mais e mais luminárias
Ao longo da noite

13.10.09

Quando mergulho fundo em minhas memórias


De águas nem sempre tão profundas
Vasculho
Revolvo o lodo
Até que o sedimento turve o mundo

Volto à superfície
Para retomar o fôlego
E repetir a prospecção
Quantas vezes me permitir o corpo

Vou juntando no barco tudo o que encontro
Uma caneta de pena dourada
Fotos mutiladas
Um sinete
Roupas que não reconheço
Um anel sem pedra
Baús velhos com cadeados enferrujados
E chaves há muito perdidas

Reconstruo o passado como quem monta um mosaico
Pequenos tijolos que restauram as paredes
Deste edifício frágil
Em frequente ameaça de desmoronamento