27.2.09

Catáfora


(para Orides Fontela)

Sabe aquela sensação que se tem
Quando numa estação
Esperando pelo trem
Você o vê chegar
E sem
Em nada pensar
Na plataforma se posiciona?

Aí ele chega
Passa
E não para

Pois é
Hoje acordei assim
E além de tudo
O som que ouvia
Me avisava
Da chuva que caía

19.2.09

Everything's all right


O Sol esbarra no varal
Horizonte maduro
Longo vôo

O Sol aponta um ponto
Asa quebrada
Último pouso

Uma luz oblíqua de quase lua
Sangue seco
Ardor e podridão

Fim de tudo
Encerrou-se a missão

18.2.09

Morpheu, bossa e balanço


Hoje acordei
De madrugada
O vento
Em minha cabeça
Soprava palavras

Uma clara melodia
Pano de fundo
Alinhavando lamentos

Logo reconheci o estilo
Lembrou-me os sambas do Miltinho
Mesmo ritmo e andamento

Foi mais ou menos isso que restou:

...
É pre-ciso confiar em al-guém
Para po-der contar os segre-dos
Que a gente
Sem-pre tem

Me fi-zeste sofrer
E tam-bém chorar
Hoje só me res-ta a dor
De ainda te a-mar
...

Assombrado pela música
Logo ao romper da manhã
Por todo o dia
Inspirado fiquei
Outra visita tão boa
Espero de novo receber

17.2.09

On the sunny side of the street


Peripatética figura
Chauffeur de si mesma
Em contínuo aprendizado e ensino

Anda por aí sem nada desprezar
Tem o olhar naturalista
Que aos séculos remonta

Em plena urbanidade
Por entre as frestas
Junto aos postes
Nas praças e canteiros
Encontra surpreendentes elementos
Invisíveis a nós mortais
De visão panorâmica e desatenta

Matos e ervas para o dia-a-dia
Especiarias das mais finas
Árvores insuspeitas e raras
Palmeiras excêntricas
Graças e curas inusitadas

Para tudo que encontra vê um uso
Coleta e destaca o que acha
Torna mais interessante o nosso mundo

16.2.09

In my moleskine


Aquele caderninho marrom
Que era seu
E que você me deu
Para registrar as coisas que penso

Não teve jeito
Como fiel escudeiro
Não se livrou de você

Nele só consigo anotar sentimentos
Que lhe dizem respeito

Está tudo lá

Cenas
Expressões
Cheiros
Trejeitos
Olhares
Espasmos
Humores
Sensações
Emoções

Nossos segredos

13.2.09

Rapsódia húngara


Os longos dedos de Franz Liszt tinham ao piano a agilidade e extensão que, até então, eram inimagináveis para qualquer mortal.
Como grande galanteador que era valia-se destes atributos para arrebatar os corações das donzelas incautas, de seios arfantes, que atingiam o êxtase durante os concertos. Invariavelmente acabavam por ceder ao seu feitiço, e com ele tinham reservados encontros, nada ecumênicos, nos quais o criador do Poema Sinfônico, ministrava-lhes curiosas lições musicais, repletas de detalhes inusitados, não raro, a mais de um par de admiradoras ao mesmo tempo.

12.2.09

Haiku inspiration 8


(para Pedro Xisto)

Asfaltardente
Na calçada as amoras
Desenham solas

11.2.09

Eterna babel


(para Manu Chao - um artista multicultural)

É preciso estudar mais o inglês
Deveria ter dado mais atenção ao espanhol
Como lamento ter perdido o meu francês
Não dá para viver sem o pensamento alemão
Para conhecer melhor a história preciso ter rudimentos de russo
Confiamos demais em como nos traduziram os textos do grego
Ficamos sem referências ao ignorar o latim
Não temos bem avaliado o legado da cultura árabe
O hebraico ainda responde por boa parte da economia (é o que sempre ouço)
Escrita e arte se misturam no japonês
O sânscrito é mesmo impossível de se alcançar
O bicho papão atual é o chinês

Reformado e mal tratado
Puído e desrespeitado
O português insiste
Se arrasta e sobrevive
Ainda que com papel secundário

Quanta dúvida
Maior ainda a frustração
Neste mundo plural
Nova pangéia
Nos forçamos a esticar as antenas
E captar mais idéias

Por outro lado
Deixar-se inundar por tudo que chega
Só aumenta a confusão
Às vezes não temos bons filtros
E restringir-se ao que se sabe
Pode ser a melhor solução

O conhecimento ancestral
Aprendido na aldeia
Passado da avó para o neto
Pode não ser todo saber do universo
Mas é saber e universal
Acalma o espírito
E ajuda a existência a fazer sentido

10.2.09

Por volta das quatro


(também para Ferreira Gullar)

Não tenho medo
Do combate nem das mutilações
Do sofrimento e da doença
Da miséria e da fome
Da traição e do perdão
Do inferno e da morte

Não tenho medo de ter medo
Da mediocridade e da demência
Da passividade e do aceite indigesto
De enjoar e não vomitar
De não conseguir me enojar
De absorver e não defecar
De me deixar estragar

Tenho medo de transpirar
Feder
E não me suportar

9.2.09

Smart power


Mulheres
Com mais de 200 anos
Mais de 200 quilos
Mais de 200 mil quilômetros rodados
Mais de 200 pares de sapatos no armário
Mais de 200 opiniões sobre o mesmo assunto
Ou que tenham mais de 200 argumentos para nos dispensar
Não devem ser contrariadas

6.2.09

Metalurgia da carne


Côncavo
E convexo
Acomodam-se
Sem atrito
Quando for perfeita a usinagem
A montagem não exigir fixação
E houver carinho

5.2.09

Aération nécessaire


(para Ferreira Gullar)

Hoje
Sob minha casa
Consigo esticar melhor as pernas

As escavações foram profundas
Esqueletizaram-se os alicerces
E grossas raízes
Precisaram ser removidas

Ameaçavam fazer ruir toda a estrutura

Temi pelo edifício
Mas ao final
Tanquilizei-me

Manteve-se impassível

Nem uma rachadura (significativa)
Pode ser observada

A cada dia mais me convenço
De que arquiteto e mestre de obras
Devem sempre trabalhar juntos

4.2.09

Haiku inspiration 7


(para Alice Ruiz)

Tarde de maio
Te vejo só um ponto
Tarde demais

3.2.09

Flor da lua


(para Margaret Mee)

Plantas
Flores
E um olhar vegetal

Ordinárias ou raras
No papel e mais nada

Traço perfeito
Obsessivo detalhe

E o resultado
Não é apenas retrato
Mas um outro mundo de fato

2.2.09

Cidadão do mundo


(para Pedro Henrique)

Muitos jardins por visitar
E como um beija-flor
Quase não pousa

Será que é por isso
Que pela vida tanto voa?